quinta-feira, 21 de agosto de 2008

PESADELO EM SAINT CROSS

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PESADELO EM SAINT CROSS

Um dia o Capataz mandou-me procurar uma instrução de serviço que deveria estar arquivada numa das milhentas pastas do arquivo da Sec Trans. Ele não sabia o número nem a data, só sabia que existia e que os procedimentos estavam regulamentados e que eu não os estava a cumprir. Não me lembro agora da essência do documento mas sei que era um disparate qualquer. Folheei aquela porcaria toda, espantei os ácaros, desorientei o pó e nada. Informei o Capataz do ponto da situação e ele correspondeu com um rancoroso «Procure outra vez». Como eu era uma pessoa muito ocupada e não tinha nada para fazer, voltei a desperdiçar hora e meia a incomodar os bichos, a trocar a ordem das pastas e folheei tudo outra vez. Como a instrução não existia (ninguém no Quartel a conhecia, e, ao mencionar o eventual conteúdo, torciam o nariz porque aquilo não lhes cheirava nada bem), voltei a obter o mesmo resultado e informei o ranhoso da fraca colheita. «Procure outra vez!». Eu disse-lhe na minha singela pureza e com a minha boa educação que já tinha procurado duas vezes e… e ele perdigotou: «Eu sou capitão* e o senhor é Furriel, eu mando e o senhor obedece» (esta custou-lhe uma semana a mancar). Como eu era um bom rapaz, cumpridor e obediente, voltei a procurar em vão o tal papel branco que me fazia a vida negra. À terceira o Capataz desistiu, mas eu fiquei de pé atrás, não fosse o fenómeno repetir-se. Tratei então de engendrar uma solução para este grave problema que ensombrava a Sec Trans. A quarta-feira era um dia muito estranho: de manhã havia o bailarico da Desordem Unida e à tarde o massacre do futebol assassino no mesmo local. Assim, na quarta-feira a seguir ao episódio relatado, apresentei-me em campo pela primeira e última vez, para acertar contas com a Abelha Maia – o Capataz jogava sempre com uma t-shirt amarela e preta às riscas que faziam lembrar a simpática abelha que, sendo fêmea tinha ferrão (ideal para uma fantasia de gay não assumido). Mandei uns estouros sem trajectória definida, proporcionei uns raros momentos de alegria incontida com uns deslocamentos pendulares à libelinha e, no meio desta palhaçada, falhei estrategicamente um chuto e fui acertar sabem onde? Na canela do Capataz! vejam lá a minha surpresa… Eu jhuro que foi sem intenção. Ele percebeu logo a subtileza da coisa e disse (magoado): «Você não joga mais!» e eu saí derrotado daquele campo de batalha, triste e desolado por ter sido rejeitado e, mais uma vez, incompreendido. Acho que mais uns intentos e punha o homem numa cadeira de rodas a passar férias em Viseu. Passados uns dias tive um pesadelo horrível. Sonhei que estava (como sempre) a dormir na minha prestimosa Sec Trans e um fumo cinzento espesso e lento invadiu o meu espaço, quase me sufocando. Saltei estremunhado cá para fora e constatei abespinhado que dois soldados da Sec Sobras estavam a queimar serrim num bidão com a ajuda de gasóleo. Isto sim é que é um pesadelo – terror e nonsense total! Então ordenei-lhes: «Quando acabarem, o bidão e o gasóleo ficam aí». E assim foi, e os meus problemas com as pesquisas no arquivo terminaram. Foi um pesadelo que acabou em bem, e voltei a dormir as minhas tarefas descansado.

«Que resto do arquivo? Não sei. Quando cá cheguei só tinha isto e essas pastas estiveram sempre vazias, nem sei o que é que estão aí a fazer».


* - capitão com “c” minúsculo, próprio do próprio Capataz.



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