sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

AS BOTAS DO TENENTE

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AS BOTAS DO TENENTE


O Tenente não era muito fácil de aturar. Primeiro porque tinha a mania de que tinha a mania e depois porque tinha o problema de ser Tenente e de ter nascido Furriel. Mas o Ranger que está no Céu (o tal dito que é único) intercedeu por ele junto de São Pedro e este, no uso de suas chaves, abriu ao Tenente a porta do quarto mais religioso da Messe, deixando-o na companhia de um famoso profeta (que perdeu a cabeça por pouca coisa). Ao que parece esta atribuição de quarto teve direito a uns sussurros de figueira e foi o próprio Judas que ajudou a que o mandassem para lá para o castigar por ele negar a sua natureza de sargento Furriel em favor de oficial Tenente. Chega de religião!

O Tenente estava mesmo com azar. O seu quarto parecia mesmo uma OGFE (Oferta Gratuita de Fardas Esquecidas). O Profeta nunca estava presente mas fazia milagres atrás de milagres porque o seu stock de fardas nunca se esgotava apesar dos sucessivos abastecimentos que os furriéis mais carenciados lá iam fazer. Como ninguém gostava do Profeta, esta acção dinâmica de subtracção permanente de peças de fardamento não era tida como sendo do foro criminal, mas sim como algo muito enaltecedor para os praticantes. Confesso que também visitei o depósito algumas vezes e nunca regressei de mãos a abanar. Não sei se nessa altura os milagres foram divulgados, mas o certo é que as cócegas chegaram ao bucho do Tenente que se deve ter visto também privado de algumas peças, pelo que achou por bem invadir o meu quarto para me ameaçar e insultar de diversas e variadas formas, acusando-me repetidamente de lhe roubar (ui, que palavra tão feia) um miserável par de botas. «Foste tu que me roubaste as botas, que eu sei» - e eu ri-me porque achei piada ao facto de ele poder pensar que eu podia fazer uso das suas botinhas (talvez para fazer um porta-chaves). Para que raios quereria eu um par de botas que não me servia, mais a mais tendo eu nessa altura 5 magníficos pares tamanho 48 (já nessa altura consideradas como sendo armas de destruição macia). Ele não quis saber das minhas alegações e continuou a insistir com aquela frase demoníaca.

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“Senhor Furriel, cadelas as suas botas?

Foste feito rufia, outro Furriel atacar,

Tu fostes de fim-de-semana e deixaste a porta aberta

Lá está o inocente à espera que o vás acusar”


“É que as minhas botas, foram feitas sem emenda

trazidas de Tancos, de casa de um Farda Azul

e saibam meus senhores questão engraxadas e com cordões

já que apenas me custaram cinco testões”


(adaptação livre de um poema épico do “Grupo Musical Os Comerciantes”)


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Confesso que me senti atraído por algumas fardas (mas sem homens dentro) e não nego que até trouxe algumas para casa (para lavar), mas botas? Eu nunca tirei as botas a ninguém! Nunca!, quer-se dizer… o Tenente chateou-me tanto e berrou tanto, andou a meter o nariz em tudo o que eu tinha no quarto e a espreitar dentro do armário e debaixo das camas, que me deixou a pensar: “Essas botas que trazes agora são memo giras”. Aquilo não se fazia a uma pessoa como eu. Bastava ele ter sido educado e pedir-me com bons modos as botas que eu não lhas dava porque não tinha sido eu o subtractor. Não gostei da atitude do Tenente e para se fazer justiça sobre uma sacanice daquelas, só mesmo com uma patifaria ainda maior, o que não foi difícil.

(faltam aqui duas linhas de texto)

Chegado à Arrecadação da Companhia de Comendo no Serviço, perguntei ao soldado Sorridente Rosadinho se queria um par de botas impecáveis - «mas olha que tens que as levar para casa, porque se as usas aqui o dono lixa-te!» - e nunca mais as voltei a ver. O soldado ficou tão contente que até me deu um bornal que não estava no inventário.

Nunca concordei com esta atitude, mas um Tenente tem que compreender que se é Furriel tem que se comportar como tal, e não foi o que aconteceu.

O bornal continua de boa saúde, tendo como alça uma correia de fixar a capota de um qualquer Unimog (que a esta hora está numa qualquer unimorgue…).

Paz à sua arma.




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