sábado, 25 de outubro de 2008

O Cyptus era o Mau

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“O bom soldado faz-se a ferro e fogo com um bom maçarico”

– o importante é saber dar-lhe gás




“Boa tarde. O senhor o senhor deu tropa no Degredo?”

“Sim”

“E lembra-se de mim?”

“Não”

“Pois olhe que eu lembro-me bem de si”


Assim começou uma conversa a menos de 100 metros da minha casa (o perigo espreita), na rua, com um ex-combatente do CIRE. A princípio, e pela forma agressiva como me abordou pensei que era algum dissidente da nossa Justa Causa que em tempos idos não tivesse entendido a nossa mensagem revolucionária. Podia também estar-me a confundir com algum outro carrasco. Mas, como eu estava de consciência tranquila, sabia que à priori se me tornasse naquele momento num mártir do CIRE isso seria certamente por lapso. Isto porque não deve haver nenhum Reco com rancor por algo que eu lhe tenha feito, com excepção para uma pequena meia dúzia de morquinhosos que já estão devidamente listados e identificados e que não perdem por esperar…

Contam as más línguas que um certo camarada de um certo turno teve uma recepção pouco amistosa numa gare de comboios, já em tempo de liberdade civil, e parece que não ficou lá em muito bom estado de conservação. Não posso confirmar estes dados porque o assunto é delicado e pode ser que estes comentários despertem uma violenta onda de raiva que ajude a desmistificar a ocorrência. Assim está bem.


A conversa continuou e o civil ajudou-me a desenterrar do passado mais uma daquelas memórias que há muito tempo tinham caído no esquecimento.


Havia no CIRE um costume muito bárbaro. Os soldados tinham por hábito matar os membros das suas famílias de forma compulsiva e repetida. Um tio chegava a morrer quatro vezes sem nunca ter chegado a nascer. Os avós também iam facilmente na razia. As sextas-feiras eram pródigas em funerais de familiares e amigos. Naquela altura morria-se muito (peste bulbónica, difteria e tosse com bússola) , e várias vezes cada um, caso isso fosse favorável ao militar enlutado (peçonhento).

Também se adoecia com relativa facilidade, mas o facto de se ter os olhos tintos de fumo e o nariz a escorrer massa consistente não comovia ninguém. A tosse do tabaco também não ajudava. Os loucos não tinham direito a baixa psiquiátrica e tal como os outros, curavam as suas maleitas no esforço diário desmedido de trabalho sem fim à vista, enquanto os amigos de Satanás se refastelavam em casa a ler Os Lusíadas (sim que nessa altura os Gouchas ainda não tinham sido inventados). Assim sendo, a doença era para aguentar: costas ao alto, boa cara, mecânico de dia, bate a pala e espirra pró lado (que os escarros só saem depois das cinco).


O nosso herói de hoje estava doente - visivelmente doente - mas isso eram perrices de jovem inconsequente para faltar às responsabilidades (tão generosamente remuneradas). Como não o internaram nem o retiraram da escala de serviço, ali estava ele, na chaleira branca do Parkauto (a mais isolada de todas), a tremer, enrolado num cobertor, fugindo como podia do vento gelado da noite e da chuva atrevida que acaba sempre por entrar por onde menos se espera. Eu estava de Sangrento de Dia e sabia da situação. Manda a Lei do Escuteiro que eu tenho que praticar pelo menos uma boa acção por dia e estava na hora. Era tarde mas o bar ainda estava aberto. Pedi um leite chocolatado muito quente e fui levá-lo ao sentinela. O rapaz não se esqueceu daquele momento singular.

Não fiquem a pensar com isto que eu era algum bom samaritano, ou que estou aqui a fazer propaganda para a eleição da minha Junta de (bois) Freguesia. Eu nunca fui um benemérito dos soldados. Na verdade eu era muito mau (já o disse antes e com razões fundadas) e estava sempre a massacrar os incautos com as minhas criações artísticas nos domínios da Acção Psicológica (não era bem isso mas era o que lhe chamávamos e soava bem).


Uma vez cheguei a Sta+ com um maço de folhas de papel lisas amarelas num formato não normalizado um pouco menor que o A5. Como eram finas não davam grande jeito para o que quer que fosse. Talvez a sopa estivesse estragada ou talvez tivessem posto folhas de eucalipto nalgum depósito de uma Berliet, mas o certo é que fiquei logo ins-pirado para um comportamento criativo. Comecei a distribuir as folhas pelos prontos dando a indicação: “Preencha e devolva”. Alguns ficavam a olhar para a folha em poses estupidificantes, outros perguntavam: “Preencher o quê?” – e eu dizia – “Não leu a Ordem de Serviço?”. O certo é que me consegui livrar do excesso celulósico em pouco tempo. Algumas horas depois recebio a censura ao acto de forma uniforme por parte do QP estacionado no Bar (onde mais podia ser?): «O que é que você anda a dar aos homens? Você não pode fazer isso!». «Ah não? – e o que é que está escrito para que não o possa fazer?» - não sabe / não responde: 98%. Em ultima instância poderiam acusar-me de ‘actividade panfletária mas nesse caso teriam que castigar os inocentes que tivessem escrito alguma coisa nas folhas. Na verdade, não era nada comigo. Eles que os aturassem, que era para isso que eram pagos (e bem pagos).


Mas claro que eu era mauzinho. Estava-me no sangue e como era grosso não me saía pelas feridas. Um Furra nunca pode ser uma boa pessoa, senão perde o estatuto.


Entre os muitos apetrechos que transportava comigo no meu dia-a-dia e noite-a-noite, figurava uma pecinha verde com dois longos pernos metálicos que aguçava a curiosidade dos recrutas e também dos prontos. Naquele tempo o povo era ignorante, se fosse agora, a coisa não pegava (penso eu). A peça era aquilo a que nós os peritos chamamos um “condensador de frigorífico”. Eu carregava aquilo numa qualquer tomada de 220 volts e depois descarregava-o na curiosidade alheia. Isto não se faz! Os moços ficavam curiosos que nem os gatos, já sabiam que de mim não vinha coisa boa, mas mesmo assim arriscavam e pegavam naquilo. Uma coisa tão pequena só podia ser inofensiva. Eu virava os pernos para o lado deles e ZÁS! – uma descarga eléctrica urticante que se sentia até a meio do antebraço. Eu sei que era assim porque resolvi experimentar para ver qual era a sensação (sim, eu era um valente!). Eu era mau mas os recos não eram melhores do que eu, porque depois de caírem na esparrela ficava calados para ver o que acontecia aos outros. O Mundo é uma coisa muito cruel.


Num dia civil (ah, como é doce a liberdade!) gravei o áudio de um programa televisivo cómico brasileiro (sim que nesse tempo o vídeo ainda só existia no Espaço 1999), e no meio das habituais “bobagens” sobressaía-se uma frase de conjuntos desconexos de letras que desde muito logo me chamou a atenção. Rapidamente decorei a fórmula (não seria de esperar outra coisa) porque achei que me poderia vir a ser útil num futuro próximo (ou não). O certo é que foi. Mal sabia eu que a Nação me mandaria dar instrução ao 4º Pelotão de Escriturários – não sei que raios de especialidade isso é mas parece-me ser algo de perigoso e muito mortífero. O tempo passa e ali estavam eles, os desgraçados, formados com o olhar no infinito e a inteligência no zero (ou um pouco mais abaixo). «Tenho aqui uma frase que têm que saber dizer de cor. Se quiserem podem apontar». Alguns ainda foram lestos o suficiente para a decorar, pois compreenderam o significado místico da coisa. Menos mal. Afinal sempre serviu para alguma coisa decorar isto: “Verdum comades biapexe e anzíftel mangeste dispância”.


Na Bíblia Negra do CIRE, o 4º Pelotão era o Pelotão dos Cristos. Todos os dias alguém era crucificado. O Aspirante tinha a mania que era bom, mas não era mau rapaz. O Furra tinha a mania que era mau e saiu-se um bom traste. Os recrutas, esses eram todos uns desgraçados, e aspiravam a uma lesão grave que os afastasse daquele martírio permanente.

Alguém ousou atrever-se a escrever num papel: “O Furriel é o senhor Coiroceiro”, e o farrapo veio parar-me à mão. Entendia o artista que eu me baldava na preparação física (e tinha toda a razão). O Aspirina corria muito, especialmente nas subidas, e eu ficava no fim da fila a empurrar os toneladas e a sofrer o “efeito acordeão” que gera com a recuperação dos atrasados. Acontece que numa bela segunda-feira o senhor Aspirina não apareceu (ainda hoje não sei porquê, mas a verdade é que eu não me metia em mexericos e intrigas de oficiais, por muito oficiais que as verdades fossem) e fiquei então completamente sozinho a dar instrução. «Meus senhores, aqui diz “duas horas de corrida em contínuo”». Aquilo parecia o arco-íris: todos sorriram maliciosamente. Então pensei: “o senhor Coiroceiro já vos vai mostrar como é”. E então levei os meninos a passear, correndo sobre os perfumados alcatrões rodoviários da região, dando-lhes a conhecer as paisagens exuberantes de Penude e Arneirós, quelhos e mais quelhos e duas horas depois estavam exaustos e em bem pior estado que eu. Então perguntei: «E então? Quem é agora o senhor Coiroceiro?». Ninguém respondeu. Sem o acordeão a banda tocou muito melhor. Estavam verdes. Foi fixe.


Da outra vez que me vi sem o senhor Aspirina (o Homem-que-tem-no-nome-o-que-não-teve-na-tropa), resolvi inventar um bocado. Os recos andavam um bocado à solta de mais e a abusar da minha boa vontade. Estava na hora de lhes aplicar uma Efe-zero-dê-quatro. Como eu era um habitual pilha-maçãs num pomar ali perto de Sta+ e o acesso ao local era íngreme, estreito, escondido e manhoso, achei que era um bom sítio para uma corridinha até ao topo com cada um a carregar com outro às carrachuchas. E lá foram eles, coitados. A coisa começou por correr bem e eles também corriam bem. Estavam a ser massacrados satisfatoriamente e pareciam umas aranhas bêbadas, pelo que já ninguém sabia muito bem o que estava ali a fazer. Os cérebros já não estavam a reagir. Foi então que o Bigodes começou a ficar muito branco e, ai ai, caiu para trás e desmaiou. Levou logo ali meia dúzia de chapadas bem assentes (e eu era bom nisso) e recuperou logo os sentidos, com uma promessa de maçã descascada (e eu também era bom nisso). O Bigodes foi o crucificado do dia. Já tinha a sua conta. Nos dias seguintes os ânimos abrandaram um bocado (como era de esperar) e ficaram a perceber que se se portassem bem podiam ficar a correr na pista sem terem que desmaiar e fazer figurinhas tristes. As maçãs, essas acabavam por aparecer de qualquer maneira…


«Ó Cyptus, tu a escrever estas baboseiras deves pensar que foste um grande herói» (fala a consciência epistemológica aqui do Danger)


O Cyptus era o Mau. O Mau por excelência e o maior desestabilizador da moral militar (modéstia aparte). Raramente recorria à força (até porque isso cansa) mas fazia-se valer dos seus super poderes de Furriel para levar os recos à loucura. A maçaricada do QP (incautos) também acabou por pagar cara a factura de não o terem enviado para a Reserva Territorial ou para a Reserva de Incorporação – actualmente estas duas expressões não fazem qualquer sentido, mas na altura eram coisas muito importantes e valiosas.




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