domingo, 21 de setembro de 2008

MARCA REGISTADA




MARCA REGISTADA



Distracções era coisa que não faltava na Humidade. Havia sempre que fazer. E não fazer nada também dava muito trabalho. No que toca a trabalho calma aí, que os assuntos eram de esmerada responsabilidade e como tinham que ser devidamente ponderados podiam muito bem esperar. Urgências só no hospital (e só no de Viseu, porque o nosso não tinha especialistas para braços partidos). Por tudo isso e muito mais, sobrava tempo mais do que suficiente para o resto em geral. O leque era diversificado e as tentações eram grandes. Se a ousadia sobejava podia-se ir até à Messargen tirar uma soneca. Se a ousadia pudesse sair cara ficava-se pela Enfermaria, onde se dormia com direito a guarda privativa: socorristas, pacientes e os faz-de-conta. À 5ª, a feira constituía um forte atractivo, sobretudo para lançar olhares furtivos sobre decotes anónimos. Às vezes corria mal e dávamos de caras com quem menos queríamos ver. Era um bocado estranha aquela sensação de ser repreendido pelos baldas por sermos menos baldas, ali mesmo em frente às bancas das calças de ganga McRotaivo ou das meias “da serra”. Mas o que vale é que éramos todos amigos (às vezes). A “Tasca dos Passarinhos”, à entrada dos Remédios para quem fugia pelo lado do cemitério, era também um pólo cultural apetitoso, muito embora a proximidade a Sta+ fosse um factor de elevado risco a ter em conta. Confesso que nunca lá entrei. Eu era mais de me desenfiar pela rua dos burros abaixo e de ir para a loja das fotografias que havia ali na Rua do Feriado. Um dia, estando o Capataz ausente, decidi ir à tal loja mas ao sair da Sectrans fui apanhado em flagrante delírio pelo 1º Sarjola Urtigoso: «E onde é que o senhor pensa que vai?» (seguido de palavrão com dois “erres”). E lá fiquei eu mais uns minutos com a minha fiel secretária a pensar na forma de sair daquele buraco. Plim! Peguei no telefone e liguei à Má Companhia e disse: «Ó meu Alferes, as suas fotos já estão prontas mas aqui o nosso 1º não me deixa sair». Passei o telefone ao dito 1º e, claro está, saí em debandada. Mais um passeiozito inocente de balda concertada, em favor da classe operária e com o consentimento da hierarquia no pleno exercíco das suas funções (chama-se a isto “trabalhar”).

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Os estratagemas não eram fáceis para todos. Dependia um bocado de quantos eram e onde fosse, quem mandava e se realmente mandava. Havia um camarada que nem de desculpa precisava. Arranjou este um elaborado esquema justificativo que o fez sair da escala de serviços, deixando-o mais disponível para trabalhar (em casa). A maior balda de que há memória foi cometida pelo Júnior que chegou ao Degredo numa 3ª feira e saiu para fim-de-semana logo na 5ª seguinte e não apareceu na Humidade. O importante era ser visto na cidade. A cidade era como que um prolongamento da nossa Grande Casa. Era o jardim. Tínhamos três hospícios, duas clínicas de reabilitação e um sanatório ali numa rua que subia para o almoço e que ninguém sabia muito bem ao certo para que servia (dava abrigo a uns gaijos pacatos). O que ficava no meio era caminho de servidão (e o resto era campo de escravidão). Bastava passear à noite pelas ruas tranquilas e sorrir num café e pronto: o ponto estava picado – “Ele está cá”, “Eu sei porque o vi”, “Onde?” – não interessa – “Se precisarmos dele perguntamos aos outros”. E assim se distribuíam as tarefas e os serviços pelos milicianos e pelos encaixilhados: uns trabalhavam pelos outros que se baldavam e baldavam-se todos em geral e a coisa corria bem, tal como um mecanismo de relógio infestado de caroços de azeitona.

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Outra distracção muito apreciada era a “praxe”, que era uma coisa que nunca existiu. A respeito deste assunto, um dia o BMW invocou o seguinte oráculo sagrado: «Acaba-se a praxe e começa o terror». Eu tinha jeito para esse tipo de lides tauromáquicas mas por azar não pude comprar nenhum louvor e por isso não pude meter o chico. Mas enquanto lá estive sempre dei os meus melhores.

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Ora estava eu muito bem desocupado a chegar à Companhia de Obstrução, quando deparo com um reco minúsculo à porta da Arrecadação a olhar para ontem.
Furriel Cyptus – «O que é que está aqui a fazer?»
Reco – «Estou à espera de um camarada que entrou na Arrecadação, meu Furriel»
Furriel Cyptus – «Pois muito bem. Assim sendo, se alguém lhe perguntar quem você é, o senhor responde “eu sou um piço!”, entendeu?»
Reco – «Sim meu Furriel»
De seguida entrei na Companhia e disse ao Furriel Joca para sair perguntar ao reco quem ele era.
Furriel Joca – «Quem é você?»
Reco – «Soldado recruta …» (nome, número mecanográfico, etc.)
Furriel Cyptus – «O que é que eu lhe disse? Você responde “eu sou um piço!”»
Reco – «Sim, meu Furriel»
Então entrei novamente na Companhia e pedi ao Furriel Bacia para sair e perguntar ao reco quem ele era.
Furriel Bacia – «Quem é você?»
Reco – «Soldado recruta …» (nome, número mecanográfico, etc.)
Furriel Cyptus – «Outra vez? O que foi que eu lhe disse?»
Reco – «Sim, meu Furriel»
Furriel Bacia – «Vê lá se arranjas uma coisa melhor que esta não teve piada nenhuma»
Como a coisa correu mal resolvi desistir desta cruzada e ir pregar para outras paragens. Ao sair da Companhia vi o BMW a dirigir-se para o seu covil e para não ser visto (uma vez que eu não era daquelas bandas) tive que me refugiar num pequeno balneário que existia mesmo em frente. Ao ver ali um reco isolado perguntou:
BMW – «O que é que você está aqui a fazer?»
E em altos brados recebe a seguinte resposta:
Reco – «EU SOU UM PIÇO!!!»
O Capitão olha em redor e, não vendo o criminoso, diz em voz alta:
BMW - «Furriel Cyptus, isto é obra sua. Veja lá o que é que arranja!»



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